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Melancolia: Um Quase Diário

Por Gilbert Daniel da Silva

As vivências que acumulamos no trabalho de campo, em nossas pesquisas etnográficas, configuram um bloco inteiro de sensações.

São cores, roupas, cenários, paisagens. O que se bebe e o que se come, entre pequenas entrevistas e curiosidades compartilhadas. Sempre a surpresa e o desafio, misturados, em cada espaço palmilhado junto com os nativos.

É preciso se entregar quando se faz uma pesquisa dessa natureza, e o corpo do pesquisador, o nosso corpo, está sempre ali, por inteiro, mesmo quando algo ou alguém insiste em comprometer o trabalho. É disto que estou falando, de uma entrega desafiadora, verídica, até certo ponto. Testemunhada pelos próprios nativos – dos campos e das grandes cidades.

Eu tenho comigo que a experiência etnográfica é, sobretudo, uma boa forma de multiplicar o próprio mundo, no contato com outras culturas, nos grupos culturais que escolhemos para estudo. Muito mais do que um “estudo”, estou falando exatamente disso: a antropologia consiste em uma condição formidável para se dizer algo, ainda que o dito nunca esteja a altura daquilo que foi ouvido ou testemunhado. E nunca está a altura porque se trata de uma maneira de dizer que é produzida de empréstimo, um dito que está sempre em dívida com aqueles que se dispuseram a participar das nossas pesquisas. 

Estamos, de certo modo, sempre em dívida com eles.

Talvez essa condição explique um pouco certa melancolia de quem se dedica ao trabalho de campo. Nossos diários – só eles sabem – guardam um pouco dessa qualidade, desse tom elegíaco, um tanto fúnebre, quando os abrimos anos depois. Ainda os tenho comigo, e quando em mãos e sob os meus olhos ansiosos, revejo as cenas e palavras como em um pequeno flash, um instantâneo ainda gravado na memória. E tantos pensamentos retornam ou se desdobram, se reinventam nesses segundos que nos aproximam daquilo que se viveu um dia, uma noite.

Está tudo lá, como que congelado no tempo. E sempre me vem essa sensação de transbordamento, que faz jorrar as sombras, os rostos, os sabores, as angústias, as descobertas, as invenções. Um bloco, sempre em blocos.

E desses blocos, o que vem?

Acho que deles surgem, por um lado, as contradições, os movimentos em falso, as dúvidas; e por outro, a busca por uma interpretação que seja coerente, que se avizinhe daquilo que foi observado, que faça sentido não apenas aos meus olhos, mas que diga algo àqueles que caminharam junto comigo, nas ruas, nas casas e edifícios, nos bares e galerias.

Como se fosse possível restaurar esses blocos de sensações no cruzamento com as teorias que estudamos, repetidas vezes, cruzamento esse que também se articula com a escrita, quando retomamos ao gabinete.

Sem essa possibilidade, sem essa restauração da memória e dos dados apurados, nenhuma etnografia seguiria adiante.

E se chegamos ao final, já somos parte de um outro, revirado e transformado. Como quem atravessa o rio depois de inventar a canoa e com ela, dentro dela, boiando na travessia das margens, chega do outro lado e o rio não é mais o mesmo. Tampouco as margens serão as mesmas. 

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