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O comum num dia comum do Espaço Luiz Estrela

Por Sandra Pereira Tosta

Dia: 15/11/2014- Sábado Entre 14:30h e 16:00h

Faixada do Espaço Comum Luiz Estrela.
Foto de Thais Nogueira Gil.
Faixada do casarão com o brasão de uma cruz na parte superior.
Foto de Thais Nogueira Gil.

Registros de uma primeira viagem…

Ao sair do carro estacionado em frente ao Espaço, o casarão aparece em obras e com escoras. Um estandarte tem desenhado uma estrela com a imagem de Luiz ao centro. Dois outros cartazes chamam a atenção pelas mensagens: solidariedade, doação e amizade.

As ruas do entorno estão inquietantemente calmas, não se vê quase nenhuma pessoa. Uma ou outra; uma vizinha chega com compras e entra num prédio em frente. Eu entro no pátio do Espaço que está impecavelmente limpo e organizado.

Me apresento a uma pessoa cujo nome em latim significa Vida, que vem ao meu encontro e me recepciona. Um rapaz magérrimo, com calças justas, tênis branco e rosa, uma “meia” numa perna, camiseta colada e um colete bem pequeno de lã. Está com o rosto carregado de base rosada, o cabelo é bem loiro e baixo. Pouco depois sairia para o fundo do quintal para lavar o rosto e escovar os dentes.

Em seguida, Vida me apresenta a Ozires. Um rapaz que se sente mulher, me dirá ele, depois de um tempinho de conversa. Também muito magro, calça jeans e uma malha que parece aquece-lo de um frio por ele sentido e confessado a nós. Ozires está deitado num dos sofás- são vários, naquele canto aos fundos do pátio.

Vida me oferece chá mate e eu aceito de bom grado, perguntando se está adoçado. Não está e eu encho um copo que Ozires se preocupa em vistoriar se está limpo. O copo “lagoinha” guarda no seu fundo um pouquinho de açúcar apenas e digo a ele que “não se preocupe, está ótimo assim”. Com meio copo de chá na mão, sento-me numa das cadeiras ao lado de um sofá onde Vida está recostado, quase deitado. O ambiente é leve, acolhedor e silencioso sonorizado por cantos dos muitos pássaros que batem asas por ali.

Conversamos sobre várias coisas: a casa, as obras, o teatro, a Pedagogia Libertária que acontecerá amanhã, domingo. Não sabem me dizer precisamente a hora. Ozires parece ser um hóspede no Espaço. Fala da vida dele, do tanto que foi abusado sexualmente pelos irmãos mais velhos. Teve vontade de matá-los e se matar! Não fez isto e os irmãos hoje são todos evangélicos, comenta ironicamente.

Esta confissão vem à tona porque, àquelas alturas, Vida me mostrava um livro de uma moradora de rua- ou será na rua? Que andarilhou pelas ruas da cidade de São Paulo e se matou. Enquanto viveu contou com o apoio do deputado estadual, Eduardo Suplicy e outras pessoas importantes de lá: intelectuais, diz Vida. Eu folheio o livro e digo que vendeu muito, pois, aquele exemplar que tínhamos nas mãos já era a 18º edição. Ed. Vozes.

HERZER, é o codinome da moradora cujo rosto estampado na capa do livro-A Queda para o alto, hoje, na 25ª edição, transmite um olhar sereno e calmo, bonito, como sereno e calmo era o ambiente do Luiz Estrela naquele meio de tarde que passei por lá. Vida lê poemas de Herzer para mim e eu me encanto com o texto.

“Minha mãe era uma mulher vulgar. Nem minha, nem de minha irmã; nem de João, Pedro ou José. De todos ao mesmo tempo sozinha.”

Eu queria ser da noite o sereno

e umedecer o vale seco e pequeno.

Eu queria, no dia claro, luzir

para o amor todo o povo conduzir.

Eu queria que branca fosse a cor da terra

e não vermelha para inspirar a guerra.

Eu queria que o fogo me cremasse

para ser as cinzas de quem hoje nasce.

Eu queria que os belos poemas fossem de Deus

para neles encontrar as virtudes dos irmãos meus.

Eu queria, muito queria saber ganhar

para as simples alegrias poder comigo guardar.

Eu queria, como queria, saber perder

para de ti, agora, tanta saudade não ter.

Eu queria morrer nesse instante sozinho

para novamente ser embrião e nascer

— eu só queria nascer de novo, para me ensinar a viver!

(Anderson Herzer como ela passou a se autodenominar depois de assumir uma identidade masculina, encontrou na morte os fins de seus dramas. Contracapa do livro)

Vida e Ozires comentam sobre o bloco de carnaval que está sendo organizado, vão homenagear a poeta Hezer. “Homens se vestirão de mulher e mulheres de homem”, dizem, pra “mostrar que sexo pouco importa”. Ozires disse que vai se sentir “linda”!

Aproveito para dizer que tenho no carro uma sacola de livros, quando Vida me explica sobre o sistema de empréstimos da biblioteca do Casarão- na verdade um amontoado de livros e outros tantos espalhados num dos cômodos do ECLE, onde, pouco depois transitava acompanhada de Ozires que me apresentava o Espaço. “Aqui ainda vamos organizar sabe Sandra…”

Da mesma forma, num outro cômodo, Ozires me mostra sacos de roupas que eles ainda vão separar, ver o que se pode aproveitar, doar…”. Pergunto pela Feira de artes que deve acontecer no próximo sábado- 22/11, ele diz não saber sobre isto.

Voltamos para o pátio e neste meio tempo Vida escovava os dentes numa “pia” improvisada que também serve à cozinha da casa- instalada debaixo de lonas no canto esquerdo de quem entra. Comento sobre quando chove…” a gente lava tudo de novo…” Eu brinco: “É isto, lavou tá novo”.

Pergunto por outra pessoa do Espaço, Ozires me responde: “saiu com um tanto de gente ontem numa Kombi, acho que foram prum retiro…”

Chega outro rapaz que não sei ou, neste momento, não me lembro do nome. Vai pros fundos do pátio para tomar banho. Vida diz que escovou os dentes, pois quer beijar muito na festa. Me pergunta como ele está, como eu acho que ele está. Na verdade, a mesma roupa com o acréscimo de um casaco tipo bolero de brim cáqui. Ozires diz que o colete de baixo não está bem. Vida, dissera ele pouco antes, me olha, se olha e tira a tal peça e joga na bolsa: “fica aqui pra quando esfriar…”

Nestas alturas entra um moço “bonito” que faz Ozires tremer, segundo diz ele mesmo. Pergunto quem é aquele moço moreno, de coturnos, roupas mais escuras. Ozires explica que ele é guarda da escola do lado, “está sempre aqui com a gente, nos ajuda a vigiar, a segurança, sabe como é…”

Vida sai com um andar elegante e nada exagerado, leve… Eu também saio acompanhada de Ozires que apanha a sacola de livros. Volto pra casa pensando naquela vivência, curta, porém intensa… Preciso ter mais tempo para vivenciar o Espaço Comum Luiz Estrela.

 

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