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Rituais de passagem e aprendizagens de expressão dos sentimentos

Por Tania Dauster

Pergunta frequente no período da pandemia (1): o que ocorrerá na pós-pandemia? O pressuposto era de que muito do que ocorria nesse período, transferido para relações online, poderia permanecer por ser mais eficaz. Isso aconteceu, em parte, na área universitária, onde os autores deste artigo trabalham, bem como no âmbito das transações bancárias, das relações médicas, psicanalíticas, religiosas e de práticas de exercícios físicos entre outras.

Neste texto nos fixamos no tema do luto no decorrer da pandemia, mais especificamente nos questionamos se a mudança, ocasionada pelo distanciamento físico, interferindo no ritual (2) do enterro, mudou o sentimento das inúmeras perdas de amigos, parentes, enfim, dos que faleceram. Mesmo assim faremos algumas referências a algumas práticas surgidas nesse período e que sugerem aprendizagens de outras formas de sociabilidade.

Para refletir acerca dessas educações, aprendizagens, técnicas corporais e interrogações dividimos este artigo em cinco tópicos: Antígona: o ritual de enterrar os mortos e a insurgência civil, O corpo segundo Mauss, Tecnologia virtual  e expressão dos sentimentos, O vírus em ação, Aprendizagens e vida social.

Antígona: o ritual de enterrar os mortos e a insurgência civil

Em nosso texto nos referimos à tragédia de Sófocles (3) que abrange, pelo menos, três grandes e constantes aspectos através dos séculos, além da morte: a política, a família, a insurgência civil da mulher e a religiosidade.

O sepultamento do morto é uma ação consagrada na tradição greco-latina, um ato que, na sua dignidade, associa-se a uma celebração de amor, uma reverência à memória do defunto e à ideia de respeito à dignidade da pessoa humana em diferentes contextos éticos e culturais.

O culto aos mortos atravessa os séculos e culturas e, ainda hoje, embora com rituais diferenciados, tem o mesmo significado:  homenagear os que partiram, preservar a lembrança dos que se foram e sepultá-los respeitosamente segundo tradições e valores sociais e religiosos.

Retornando à Antígona (3). Antígona é filha de Édipo, cujo destino o fez matar o pai e desposar a própria mãe.

Instala-se, inconscientemente, no princípio da tragédia, uma família que chamaríamos de incestuosa, uma vez que Édipo é filho e esposo de Jocasta, sua mãe e esposa, e virá a ser pai e irmão tanto de Antígona quanto dos outros filhos e filhas gerados neste casamento.

Sabedores da relação incestuosa por Tirésias, o profeta, a tragédia de suas histórias é assim revelada à Édipo e Jocasta.  As consequências se seguem dolorosamente. Jocasta comete suicídio e Édipo perfura os próprios olhos como se assim evitasse ver os acontecimentos trágicos que o acometeram.

Édipo assassino do próprio pai, marido e filho de sua esposa encerra, no seu destino, transgressões imperdoáveis na tradição greco-romana.

Cego, vagando por um mundo desconhecido, foi pela filha/irmã conduzido. Filha que, no final de sua vida, protagoniza o drama de se encontrar, solitária, na tumba de sua própria morte, condenada pelas leis estabelecidas por Creonte, irmão de Jocasta, tirano a quem ela desafiou civicamente ao cumprir o ritual de enterrar, com suas próprias mãos o seu irmão morto, Polinices.

Há quem interprete, baseando-se na relação radical e passional de Antígona com seu irmão, um afeto que iria além do fraternal, envolvendo tintas de erotização.

Observamos a duplicidade e até a multiplicidade de papéis familiares que se estendem aos personagens dessa complexa rede familiar. Contudo cabe a Antígona o principal protagonismo. É ela que se insurge contra o déspota Creonte, irmão de Jocasta, seu tio, no seu desejo sagrado e moral de sepultar o irmão de acordo com as leis divinas, que considera superiores às leis de Estado.

Revoltar-se contra Creonte significa a morte bem como uma  rebelião  civil contra as leis ditadas pelo decreto do tirano.

É neste sentido que vemos em Antígona tanto a personagem que expressa a dignidade do sepultamento humano, bem como  uma  das primeiras protagonistas de uma linhagem de mulheres que se insurge contra os poderes autocráticos civis.

O corpo segundo Mauss

O corpo, o corpo morto, está no centro de nosso texto. É por isso que buscamos em Marcel Mauss as referências em relação ao significado do corpo e do ritual do luto, que ele denomina de técnicas corporais. Segundo Mauss “é possível fazer a teoria da técnica corporal, definindo-a  (Mauss, p. 211) como “as maneiras como os homens, sociedade por sociedade e de maneira tradicional, sabem servir-se de seus corpos”. (Idem)

Trata-se, no caso, de uma observação de hábitos sociais próprios de cada sociedade, práticas inculcadas pela educação. Segundo ele o “ato impõe-se de fora, do alto, ainda que seja um ato exclusivamente biológico e concernente ao corpo”. (Mauss, 215)

É necessário que esse ato seja “tradicional e eficaz” porque “não há técnica e tampouco transmissão se não há tradição.” (Idem, 217) E, de forma mais explícita: “O corpo é o primeiro e o mais natural instrumento do homem. O mais exatamente, sem falar de instrumento, o primeiro e mais natural objeto técnico, e ao mesmo tempo o meio técnico do homem é seu corpo”. (Ibidem, 217)

Ao recorrer a Mauss levamos em conta que ele se refere a sociedades arcaicas, relacionais, onde o todo prevalece sobre as partes. Neste sentido é que sublinhamos o caráter de linguagem que permanece nas manifestações de pesar e dor, pois são ações simbólicas, parte do patrimônio imaterial da civilização greco- latina.

No Brasil, temos, ainda recentemente, histórias das “carpideiras ou “ rezadeiras” participando de velórios segurando velas ajoelhadas sobre esteiras, cantando “Avé Maria”.  Este comportamento ainda pode ser observado em pequenas aldeias fora dos grandes centros, na “roça”, onde havia o hábito das notícias dos velórios serem comunicadas de boca em boca para os parentes e conhecidos acorrerem ao enterro em sinal de respeito. A cerimônia, acontecendo em casa, previa um longo ritual, com comida e bebida, além de roda de conversa como parte da despedida. Tudo comparável a uma “festa”.

O clássico romance de Jorge Amado “A morte e a morte de Quincas Berro D`Água”, transposto para o cinema e para a televisão, de forma sardônica e feérica, é um relato ficcional sobre a temática em regiões de cunho relacional no Brasil. Sinal da diversidade cultural do país.

Nesse modo de vida outro hábito notório consiste na escolha prévia da roupa do sepultamento por homens e mulheres. Um enxoval de uso exclusivo para a situação selecionado em vida. No cerimonial as mulheres vestiam-se de preto, o ataúde era colocado em cima da mesa, cercado por velas rodeando seu topo, até o momento do féretro sair em direção ao cemitério situado, frequentemente, ao lado da igrejinha local.

Permanecendo na literatura e entrando no reino da poesia  recordamos o poema de João Cabral de Melo Neto: “Morte e vida Severina” (10), no trecho em que um retirante dialoga com a rezadeira:

“ – E ainda se me permite

que lhe volte a perguntar:

é aqui uma profissão

trabalho tão singular?

–    É, sim, uma profissão

e a melhor de quantas há:

sou de toda a região

rezadora titular.

–  E ainda se me permite

mais outra vez indagar:

é boa essa profissão

em que a comadre ora está?

– De um raio de muitas léguas

vem gente aqui me chamar;

a verdade é que não pude

queixar-me ainda de azar.

– E se pela última vez

me permite perguntar:

não existe outro trabalho

para mim neste lugar?

– Como a morte aqui é tanta

só é possível trabalhar

nessas profissões que fazem

da morte ofício ou bazar.”

Após este fragmento, trágico e irônico, retomamos  Mauss que, no texto “A expressão obrigatória dos sentimentos” (p. 147), comenta o significado das lágrimas, nas manifestações de dor.

O choro, ao inverso do que se possa pensar, não estaria circunscrito apenas a fenômenos psicológicos e fisiológicos, “mas abrangeria fenômenos sociais, marcados por atuações não-espontâneas e da mais perfeita obrigação” (Idem, p. 153), sendo tais manifestações direcionadas aos que nos observam em um evento coletivo, como é o caso do sepultamento.

 A participação de “carpideiras” ou “ rezadeiras” no ritual relacional brasileiro, que foi mencionado no fragmento do poema de João Cabral de Melo Neto, pode servir como exemplo para a interpretação de Mauss, pois são mulheres que acorrem aos funerais para prantear o defunto. Não são aparentadas, mas têm este papel social   reconhecido pela comunidade, através do que representam e da forma pela qual se agruparam a partir de certas características femininas.

Mauss constrói a noção de técnica corporal a partir da observação do concreto (p.212,1974), como imposição da sociedade e da educação sobre os indivíduos. Para ele as técnicas corporais podem ser enumeradas e exemplificadas por gênero, por idade, e estão presentes, entre outros exemplos, nos hábitos de higiene do dia a dia, bem como nas formas de se alimentar, de andar, ou seja, nas diversas montagens fisio-psico-sociais que representam a “autoridade social” (Ibid. p. 231, 1974,).

Tecnologia virtual e aprendizagens de expressão dos sentimentos

Acerca da tecnologia virtual, podemos nos interrogar até que ponto ela vem moldando nossas ações, nossas formas de atuar e, não menos significativo, a maneira de revelar nossos sentimentos. Estaria a tecnologia digital conformando nossa maneira de pensar, de atuar e, ao interferir em nossos rituais, ressignificando nossos sentimentos? E, ainda, retornando a nossa questão inicial, as formas de expressão de luto, durante o período da pandemia, mudaram o sentimento que lhe corresponderia na pós-pandemia?  Como se manifestariam nas técnicas corporais e,  em que medida, as formas de comunicação teriam influenciado essa eventual mudança?

Essa suposta transformação estaria sendo assimilada,  inconscientemente, no momento em que a vivemos no dia a dia?

Devemos levar em conta que o processo que ocorreu no período da pandemia não foi linear nem homogêneo. Variou de acordo com questões relacionadas à política, bem como à diversidade cultural e sanitária em nosso país, conhecido por sua desigualdade social.

Se a tecnologia virtual configurou um divisor de águas nos perguntamos ainda como ela incidiu nas manifestações de luto na   atualidade. 

O que temos agora  é  uma “memória” microscópica sobre fenômenos sociais que foram vivenciados no dia a dia das notícias, ouvindo ou lendo  falas e partilhando sentimentos de dor, desespero e inconformismo.

O contexto   sobre o qual nos  voltamos também foi composto pela circulação de textos emitidos por integrantes de Face-Book, pessoas, em  geral,  com formação universitária, idade acima  de 40 anos, moradores de distintos lugares e com interesses variados.

Relativizando: imaginamos o Face-Book como o ágora onde se reuniam os cidadãos gregos para falar da pólis e seus acontecimentos. Como atores construímos papéis nas relações em curso, improvisando nossos perfis neste fantástico teatro no qual   nem sempre conhecemos presencialmente nossos interlocutores. Relações fantasmagóricas e desmaterializadas nos entrelaçam. 

Observamos, ainda, no período pandêmico, que as missas de sétimo dia passaram a ser online ou na modalidade “flex”, ao mesmo tempo online e presencial, como mostraram os jornais e a internet.

A tecnologia online, no âmbito das redes sociais, mais explicitamente no Face-Book e Instagram publicou matérias sobre óbitos de formas semelhantes àquelas comuns nos obituários e notícias fúnebres nos jornais. Essa ferramenta foi usada para homenagear o morto através das postagens de textos e fotos que marcaram   momentos e características expressivas dos mortos. Pode ser observado que esta é uma prática que persiste e se integrou ao modo de vida de grande fatia da população.

Cremos que as formas de expressão  estão em mutação num movimento já incorporado por grande parcela da sociedade, e  assim se manterá por sua eficácia simbólica, permanecendo a comunicação da solidariedade, a importância de marcar as fases do luto, da purgação da dor, tanto uma catarse quanto um alívio.

Essas expressões de luto significam que as redes sociais são um espaço digno e valorizado para essas manifestações, até porque elas são dirigidas aos participantes da rede que podem ser mais ou menos próximos daquele que se expressa.

O vírus em ação

As mutações de comportamento desde o surgimento intempestivo do vírus ocorreram em locais diversos: escolas lojas, bares, reuniões de diversos tipos, como grupos de estudo on line, aulas, defesas de tese e dissertação, seminários, conferências , enfim inúmeros tipos de relações sociais . Vale a pena dizer que mantemos todas essas modalidades no cotidiano.

A gestão e controle dos corpos em hospitais, clínicas, postos de vacinação e consultórios ocasionou um distanciamento mais radical, afetando mesmo os que apresentavam risco mínimo de contaminação.

No cume da pandemia, muitos doentes de COVID-19 internados morriam tragicamente sem a presença de um parente, que guardaria para sempre o trauma de não poder se despedir do seu familiar. É de notar a evitação do corpo do defunto. Ao contrário de tudo que se viveu antes, não se tocava na pessoa morta sentida como tóxica. Em ocasiões precedentes até o advento da pandemia, a despedida do morto era manifestada através de toques de carinho, por um beijo na testa, pela proximidade ao caixão. Enfim, amor e afeto transbordavam em lágrimas e gestos no lugar do medo do contágio letal que a proximidade do ser amado significava.

Os velórios no início da pandemia configuravam-se, quase sempre, como um ato solitário, sendo o caixão, em geral, fechado pelo receio da contaminação. Familiares e amigos foram, em vários casos excluídos, por precauções sanitárias, de comparecer e dar a sua parcela de solidariedade. Essa cerimônia foi profundamente afetada conforme estamos comentando. Tradicionalmente constituiu-se como um momento no qual parentes e amigos poderiam cercar o morto, vê-lo pela última vez, despedirem-se. Instante durante o qual, entre si, as pessoas falavam de suas memórias. Após a cerimônia os presentes se dispersavam e muitas vezes em grupos continuavam juntos numa refeição.

Constatamos uma mudança radical na expressão dos sentimentos de luto. O valor da vida, a auto  preservação, colocou-se acima e além de qualquer outro afeto nesse período. Ou não?

Se Antígona usou suas próprias mãos para sepultar seu irmão, se antes da pandemia o nosso morto era depositário de nossas derradeiras carícias, a pandemia transformou nossos sentimentos e a expressão de nossos afetos. O corpo vitimado por corona vírus ficou sendo algo a ser evitado, lacrado, posto à distância; um corpo que poderia ser transmissor da morte, tóxico, ameaçador.

Os comportamentos de evitação sanitária apagaram momentos de confraternização, tão preciosos, no ritual de separação e despedida. A evitação não é uma energia passiva, é um afastamento, uma força que se opõe ativamente e, neste sentido, o contrário de como, até se sentiu e se expressou a perda de um ente querido em tempos anteriores à pandemia. Diríamos que é uma força estranha, desconhecida até então que, ostensivamente se contrapõe à proximidade do corpo COVID-19. É a força da preservação da vida antes de tudo. É a emergência do cru e agônico instinto de vida em toda a sua nudez e violência.

Entretanto, o medo do corpo-COVID-19 não deixou de gerar um empenho ferrenho de salvar parentes. No auge da pandemia os esforços desesperados das pessoas para comprar respiradores foram obstaculizados pela indiferença do governo central e por golpes de revendedores, o que acabou vitimando os que lutavam em prol da vida das vítimas sem recursos.

As cenas que presenciamos em Manaus são inesquecíveis: doentes transportados para outros estados e covas rasas para receber os mortos que se empilhavam. Esse episódio desnudou a tragédia das covas rasas sendo cavadas às pressas além de cemitérios alargados para acolher, de forma abrupta e indevida, como em momentos de guerra, os mortos da tragédia. Um espetáculo devastador em qualquer sentido ético e humanista do luto (4). Ao que acrescentamos as distinções e desigualdades existentes nos cuidados sanitários, nos rituais de sepultamento; enfim, nas condições físicas, econômicas e socioculturais.

Mais tarde a liberação das vacinas trouxe outros comportamentos sociais. Nos postos de vacinação foram registradas cenas de emoção que, por vezes, se expressavam em pranto dos que eram vacinados. Um horizonte poderia ser almejado, a popularmente expressão denominada: “luz no fim do túnel”.

Destacamos, em todo esse processo, fotos tiradas como memória deste momento, algumas postadas nas redes sociais. O alívio era relatado e o desejo de circular sem tantos riscos comunicado pelos vacinados.

Frequentemente foram feitos agradecimentos ao SUS (Sistema  Único de Saúde). Surgiram os passaportes vacinais  e eram exibidos os atestados tanto de vacinação quanto aqueles que mostravam que o indivíduo estava livre da epidemia e não oferecia perigo ao próximo.

Nas redes digitais, nas trocas de informações acerca da saúde de parentes e amigos, surgiram novas sociabilidades no uso de Correio Eletrônico, Face-Book, WhatsApp, Instagram.

Em síntese, com celulares e computadores geramos e mantemos não só novas técnicas corporais como outras “expressões obrigatórias dos sentimentos”, outros códigos sociais (Mauss, 1979, p.147). Tempo de linguagem digital para elaborar o luto. Comunicação a distância, remota, mas sempre social e, nesses termos, “obrigatória”.

Embora todas as pessoas, independentemente de sua classe social ou econômica, poderiam ser vítimas da COVID-19, é importante ressaltar que as relações sociais e econômicas marcaram possibilidades de cura e recuperação desiguais aos atingidos pelo vírus.

Aprendizagens e Vida Social

Não obstante toda autodefesa em relação ao próximo permaneceu, durante a pandemia, a obrigação de enterrar e cremar os mortos de forma digna.

Embora, no mundo digital, o próximo e o distante tenham sido ressignificados e, em certo sentido, coartados, a memória de Antígona se fez viva entre nós, herdeiros da civilização grego –latina.

Diríamos como hipótese emergente dessas reflexões que a  tragédia de Antígona está presente em nossa memória ancestral. É parte dos dias de hoje e dos significados do momento de separação. Neste sentido não custa lembrar que os rituais são de certa forma para quem fica, não para quem morre, sendo que as histórias que significam etapas do processo de luto têm cunhos religiosos e sociais e se passam segundo regras diferenciadas.

Na pandemia do  corona vírus observamos nas redes sociais a partilha obrigatória de expressões que sempre nos serviram para comunicar pesar: “Acaba de nos deixar, tristeza, meus sentimentos, pêsames, sem palavras…”.

Há, nessas mensagens, a força da solidariedade, dor e apoio coletivo e social de forma análoga aos cantos e discursos nos funerais presenciais.

As palavras de condolências, acima citadas, podem soar estereotipadas e o são obrigatoriamente, mas expressam nossas emoções; por serem sociais há que comunicá-las. Insistimos nessa interpretação marcando a força dos sentimentos que têm as dimensões complexas, que se fundem e, em suma, se constituem como linguagem. Insistimos, não serem apenas espontâneas, por serem, antes de mais nada obrigatórias porque sociais e por comunicarem a linguagem do luto. A complexidade dessa postura reside no entendimento que, embora ela não possa ser reduzida ao campo social, abrange o nível psicológico e afetivo. Trata-se de uma ação simbólica (M.Mauss, p. 153, 1979), que ao invés de subtrair, reforça os sentimentos e suas expressões fisiopsicológicas, reiterando, em lugar de diminuir, a intensificação de  suas manifestações.

Entre nós, contrastando ontem e hoje, o dia de finados, 2 de novembro era, até meados do século XX, dia de recolhimento e silêncio, dia dos mortos em que se levavam flores aos túmulos dos familiares e pessoas próximas falecidas. Igualmente as sepulturas de grandes artistas ou personalidades populares eram visitadas e homenageadas. Embora envolvendo um número menor de pessoas na visita aos cemitérios a oferenda de flores permaneceu.

Houve época não muito distante em que os homens   usavam uma faixa preta à volta das mangas de seus ternos ou camisas e as mulheres vestiam preto, mesmo nas grandes cidades, durante os rituais de despedida.

Hoje estão dissociadas as cores das roupas com a linguagem do luto. Essa forma de comunicação saiu de consenso na interpretação e comunicação da dor e dos sentimentos de pesar   nos meios urbanos.

Indagamos: será que apesar dos crematórios, que demonstram novos comportamentos e afetos, o significado simbólico do sepultamento de um corpo ainda nutriria o sentimento de enterrar uma semente? Semente (5) que frutificaria em outras vidas?

Nossa hipótese ad hoc é que as diversas formas de enterrar o karpo (5) (ou suas cinzas espalhar)  o fazemos em nome de uma possível continuação da vida. Enterrar dignamente e/ou dispor das cinzas do corpo do morto significaria plantar: um ritual social, que pode ser evocado no luctus latino.  Uma herança imaterial, simbólica, um patrimônio da humanidade, um legado de gerações e grupos sociais milenares que na fluidez dos tempos imemoriais passa por descontinuidades mas continua na nossa tradição ocidental.

Podemos hoje dizer que os anos 2021 e 2022, foram classificados como o período da pandemia.  Hoje as campanhas exitosas de vacinação contra o vírus mudaram a paisagem, embora não o tenham extirpado. Precisamos dizer que a vacinação contra o COVID-19 foi irresponsavelmente boicotada no governo anterior , mas que em 2023 o esforço vacinal retornou. Os casos de morte por COVID-19 ainda exigem certos cuidados como o caixão lacrado para enterro.

Percebemos que certas práticas criadas durante a pandemia ainda permanecem, mas não com a intensidade, obrigatoriedade, tampouco o sentimento de medo. Lembramos, nessa linha o uso indispensável de máscaras e a disponibilidade do álcool para higiene das mãos em hospitais, clínicas, consultórios e farmácias sobretudo para aqueles que ali trabalham enquanto é optativo para os demais frequentadores. Por outro lado, em lugares fechados como cinemas e teatros encontramos alguns expectadores protegidos. Nas ruas isto é raro e em instituições como universidade e escolas liberado.


NOTAS

(1) Período de pandemia. Pan sinaliza tudo e, demos, todos, indicando a dimensão do vírus que atingiu todo o planeta.

(2) Entendemos ritual, seguindo a linha de interpretação de Mariza Peirano,  como um marco que dá sentido simbólico a um momento de “passagem”, ou outro, considerado excepcional e pleno de significado na vida social por aqueles que o vivenciam.  

(3) Antígona é uma das tragédias de Sófocles. Escrita por volta de  442 a.C., faz parte do denominado “ciclo tebano”, composto de três peças, sendo Antígona a primeira delas.

(4) Acerca do luto vale a pena rememorar a passagem do livro de Joseph Conrad, O coração das trevas, em que o narrador da história se encontra com a noiva (no texto, a “pretendida’) do personagem principal do romance, Kurtz: “Ela se adiantou, toda de negro, rosto pálido, flutuando na penumbra para mim. Estava de luto, mais de um ano após a chegada da notícia: parecia que ia lembrar e manter o luto para sempre.” (Conrad, p. 121)

(5) Karpos: corpo, significa fruto, semente.


Referências Bibliográficas

AMADO, Jorge – A morte e a morte de Quincas Berro d´agua, Editora Record, SP, 1978.

DAUSTER, Tania ; Garcia Pedro Benjamim – Somos Antígona? in Joana de Vilhena Novaes e Junia de Vilhena (org) O Corpo que Resta …CORPO, LUTO E MEMÒRIA, Appris editora 2022

CONRAD, Joseph. O coração das trevas, Editora Saraiva de bolso/Nova Fronteira, RJ, 2013.

MELO NETO, João Cabral de – Morte e vida Severina, in Serial e antes, Editora Nova Fronteira, RJ, 1997.

MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia (vol. II), Editora pedagógica e universitária ltda./ Editora da Universidade de São Paulo (EDUSP) SP, 1974.

OLIVEIRA, Roberto Cardoso de (organizador) e FLORESTAN Fernandes (coordenador). Mauss, Editora Ática, SP, 1974.

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